23 de março de 2012

Rasgando a película

Melancolia

*spoilers


Não existe método satisfatório para o luto. A morte de minha irmã ainda dói bastante, e será assim para o resto de minha vida. Hoje, quando me recordo do que houve, não sinto aquele mesmo desespero dos primeiros meses sem ela, mas eu sei que passei por momentos terríveis. E, mesmo sendo clichê, só quem perdeu alguém sabe como é. Houve até mesmo um impasse: não queria que a dor fosse embora, porque significaria que eu não me importava com ela. E queria parar de sofrer, porque doía demais. Mas o tempo passa (a decisão consciente de “sair do luto” é difícil, sofrida, e necessária), e no meu caso, a dor se transforma gradualmente em saudade (o que não deixa de ser sofrimento, só que mais ameno), mesmo que em alguns momentos a tristeza venha forte. E sei também que será esse mesmo processo a cada querido que falecer (até estremeço pensando nisso), até o dia da minha própria morte, quando esse ciclo de dor e melancolia terminar para mim, e começar em outros que se importam comigo.

Essa introdução tão pessoal não é apenas para descrever meu processo de luto. É também para mostrar o mais perto que estive da personagem de Kirsten Dunst em Melancolia, a depressiva Justine. E, por mais longe que a maioria dos espectadores esteja, num primeiro momento, do sofrimento de Justine, ele é inevitável para todos nós. Seja, no meu caso, a morte de minha irmã, e no de outros, a desilusão com a própria vida, com Deus, a morte, etc. Melancolia mostrará isso com Claire, a irmã de Justine.

“Você ainda nem chegou na metade”

Melancolia se divide em duas partes, Justine e Claire. Justine se concentra no casamento da irmã Justine, que, num primeiro momento, precisa enfrentar (sim, é essa a palavra, enfrentar) o próprio casamento e as diferentes expectativas de seus familiares (mãe, pai, irmã, cunhado, sobrinho) acerca dele. Não é por acaso que o noivo não percebe seu sofrimento, e que Justine o faça masturbá-la. Algo mais “para ele”, já que sabemos que, nesse momento, ela não tem prazer algum. Justine tenta conseguir a empatia da mãe, que não suporta a ideia de vê-la casada, e não consegue. Tenta conversar com o pai, que não lhe dá atenção. Sua irmã Claire quer salvar o resto de um desastroso casamento. Seu cunhado, um homem rico, reclama do quanto foi gasto nesse casamento. O organizador, irritado com o fracasso do que planejou, se recusa a ver Justine, colocando a mão no rosto sempre que a vê. Seu chefe, até mesmo nesse dia, quer explorá-la. Além de encarar a si mesma, precisa lidar com os outros.

Desde já podemos perceber as metáforas (para quem se interessar em explorá-las) que Lars Von Trier costuma usar em seus filmes. Seu casamento é uma representação de sua própria vida, que Justine encara com sofrimento e como um fardo. O organizador que cobria o rosto com a mão para não ver Justine: não resolve nada, o problema continua no mesmo lugar. Em determinado momento, alguém avisa que distribuem a comida na direção errada, um casamento cheio de conveniências que não fazem o menor sentido, mas que são constrangidos a seguir. E vários outros. Lars Von Trier consegue colocar suas metáforas de forma fluida, tanto visualmente, quanto na própria história. Enfim, e é descrevendo o casamento que temos alguns indícios da depressão de Justine.

Na segunda parte, Claire, o filme se concentra no perigoso avanço do planeta Melancolia. Se, no início do filme, Justine se esforça para rir bastante, mas durante o casamento não consegue esconder seu sofrimento (ela sorri melancolicamente), aqui na segunda parte, Justine sai totalmente abatida de um táxi para a casa de sua irmã, num impressionante desempenho de Kirsten Dunst. Incapaz de realizar as atividades mais comuns, como tomar banho e se alimentar, Justine afunda de vez na depressão, e nada parece possível para tirá-la de lá. Mas como o próprio filme afirma, dessa vez, o foco é a irmã Claire. Obsessiva com o planeta Melancolia, de que tem pavor, Claire não consegue esconder seu crescente desespero diante de um fato cada vez mais óbvio: Melancolia destruirá a Terra. Justine encontra alívio e calma na expectativa da destruição da Terra e, ironicamente, ajuda, de sua forma, sua apavorada irmã, Claire, diante da morte iminente. O marido de Claire fica fascinado com o Melancolia , mas quando percebe que o planeta irá mesmo destruí-lo, se suicida (nosso fascínio e terror diante da morte). Claire arrasta seu filho para fugir, e os automóveis não funcionam, e ela se desespera. Ou seja, quando chega a morte, para onde correr?

Descrevo o máximo possível do filme porque incomoda afirmarem que o filme “é chato porque não tem ação”. Francamente, não creio nisso. Não nesse filme. É chato se não acontece nada, mas acontece pelo filme inteiro. Se eu vejo Claire jogando o buquê de Justine, porque ela é incapaz de fazê-lo, isso não é “ausência de ação.” Se eu vejo Claire implorando para que o marido afirme que Melancolia não destruirá a Terra, e o alívio que ela sente quando ele mente, isso não é “falta de ação.” Se eu vejo Justine espancando o cavalo ABRAÃO, um cavalo que ela “nunca monta”, isso não é falta de ação! A pergunta é: assistimos ao mesmo filme?

O início e o fim

Quando Melancolia começa, vemos a tristeza de Justine e a morte ao seu lado, mostrando claramente o caminho que Lars Von Trier seguirá. Essa impressionante introdução, com uma sequência de belas imagens (alguns fatos reais, alguns representam a emoção de Justine, como aquele que ela, como noiva, flutua pela água), e uma belíssima música, e os últimos momentos de vida na Terra, só demonstra aquilo o que vemos no marido de Claire: somos fascinados pela nossa destruição.

E quando Melancolia chega no seu fim, a "tia invencível" cria uma cabana para o sobrinho, mentindo para ele que aquilo irá protegê-lo da destruição. O garoto (os fiéis) dentro da cabana (a religião), em pose de oração (a fé), esperando que aquilo o proteja do Melancolia (a morte). Justine enfrenta a morte com serenidade, e sua irmã Claire com desespero. O garoto na sua fé sofre menos, se apoiar na religião pode fazer encarar a morte mais tranquilamente, mas está iludido. Lars Von Trier é ateu. Enquanto que, para Justine, a morte é o fim do seu sofrimento, e que não precisa temer porque “a vida na Terra é má, não precisamos sofrer por ela”, para Claire é o fim de sua vida, e ponto final.

O planeta Melancolia avança sobre os personagens, e mata todos eles. E então o filme acaba.


Fabrício Paes Coelho

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